O autor não sabe por onde começar esse texto. Na verdade nunca sabe por onde começar coisa alguma, especialmente aquelas que falam sobre algo realmente importante, e não são simples exercícios literários sobre sentimentos que não sente e verdades em que não acredita.
Ao contrário do que dizem, o pior tipo de angústia não é aquela que chamamos de “existencial”, sem nenhum motivo aparente além da própria dor da existência. O pior tipo de angústia é aquela que vem de uma dúvida muito clara e real que, na maioria das vezes, é criada por acreditarmos em algo que sabemos não ser verdade, ou preferirmos crer que são verdades as mentiras que inventamos.
Nesse ponto qualquer eventual leitor já deve ter percebido que o autor de fato não sabia por onde começar esse texto, e talvez nunca mesmo devesse ter começado a escrevê-lo. Estejam advertidos, portanto, que ele ainda não sabe exatamente como começa-lo. Então sintam-se livres para pularem um ou dois parágrafos, e esperemos que no ponto em que retomarem o texto, caso decidam faze-lo, ele já tenha se decidido a cerca de como começa-lo, e tenha uma idéia mais precisa do que é a que ele se destina.
Aos leitores de mais afinco (ou ainda, mais tempo livre), decididos a continuar lendo na integra esse texto, o narrador promete ser o mais breve possível, apesar de que já agora devem considerá-lo um escritor muito prolixo. Além de muito pouco talentoso, vez que já em meados do quarto parágrafo o texto ainda nem mesmo começou. Mais uma falha óbvia que devemos apontar é a constante repetição – a palavra “texto”, por exemplo, já foi utilizada sete vezes até agora – mas é que nem sempre podem se encontrar sinônimos, e a repetição as vezes se faz necessária. Palavras, como pessoas, vez em quando são ímpares e não aceitam qualquer tipo de substituição. Devem ter percebido também, caso tenham prestado atenção ao primeiro e ao segundo parágrafo, que o texto é absolutamente pessoal, e provavelmente discorrerá sobre algum sentimento que o autor pretende sentir no momento.
Acredito ainda que o texto não proporcione prazer estético de nenhuma sorte ao mais exigente dos leitores. Ora, se nem mesmo quando se preocupa em escrever de maneira bonita e agradável, com tiradas sagazes e frases inteligentes, o autor consegue redigir algo decente, o que dirão desse texto que escreve simplesmente como desabafo, que nada mais pretende além de causar conforto em uma hora de muitos segredos angustiantes?
O pior tipo de angústia é não ser correspondido. Desculpem a mudança tão brusca, mas é que há dois parágrafos atrás foi prometido que agora já teria tido início o texto propriamente dito, portanto, deixemos de lado as elucubrações em que nos perdemos nos parágrafos anteriores, e vamos direto ao ponto em que precisamos chegar. Repito, então, o pior tipo de angústia é não ser correspondido. A vida se faz de projeções, de um eterno criar e atender expectativas. Quando as expectativas que criamos não são atendidas, corremos em inventar desculpas para amenizar nossa frustração, e é daí que nasce a maldita dúvida. Somos idiotas o bastante para querer acreditar nas mentiras que criamos, mas não o bastante para ignorar completamente a verdade.
O tipo de mentira mais comum nesses casos, ironicamente, é o que diz exatamente o contrário. Diz que somos paranóicos, e que as verdades que nos saltam aos olhos são frutos dessa imaginação distorcida que possuímos, enquanto na verdade sabemos que fruto da imaginação é a esperança que insistimos em manter viva a todo custo. Aí reside a fonte de todo o mal. Nesse ponto deixamos de saber exatamente se estamos inventando as verdades ou se elas sempre estiveram ali, mas as mentiras que criamos nos impediram de percebê-las.
Vocês, leitores, devem estar se perguntando por que diabos estão conseguindo entender esse texto. Ora, ele simplesmente não faz sentido algum, e ainda assim vocês o entendem. Ele não se explica, não tem começo, e ele nem mesmo sintetiza muito bem o seu próprio motivo. Mas a resposta para essa pergunta é muito simples: Não existem leitores. Existe apenas um leitor. Esse texto está sendo redigido para uma única pessoa, então talvez seja hora de começar a trata-lo por “você”, e deixar de lado a pretensa impessoalidade da palavra leitores. Você, leitor, é o tema desse texto.
É claro que você é suficientemente esperto para saber que escritores nem sempre dizem a verdade sobre aquilo que sentem, mas dessa vez você sabe que é diferente, que existe alguma verdade naquilo que lê. Vamos então abandonar outra terminologia impessoal: a partir de agora os termos “autor”, “escritor” e “narrador” serão substituídos pelo pronome “eu”, pronome esse que estará se referindo a mim mesmo, este que por hora toma vosso tempo. Assim sendo resolvemos, em parte, o problema da repetição, vez que os termos “autor’ e “leitor” também já foram exaustivamente utilizados.
Você e eu temos diferentes expectativas. Você quer demais, e eu tenho quase nada. Você é a parte do poema que olha para as estrelas enquanto eu sou a que se esfrega na lama. Aquela lama suja e molhada, que fica bem no fundo do poço. Você é alegre, forte e divertido, entende de música e fala de cinema, é cheio de amigos, tem um bom emprego, uma casa bonita, um carro e um cachorro. As pessoas gostam de você e algumas delas te admiram. Eu, por outro lado, sou o cara que fica sozinho de madrugada, que olha para o teto do quarto por horas, que vê o sol nascer na janela implorando para Deus fazê-lo dormir.
Você é insistente. Acha que o telefone não toca por que estão todos ocupados. Eu já desisti, sei que a verdade é muito mais dura que isso. O telefone não toca por que não querem falar comigo, e estou completamente sozinho.
O seu único problema sou eu. Você, infelizmente, não vive sem mim. Você nunca entendeu por que é que toda sua vida o único poema que conseguiu decorar foi
“Vês! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão - esta pantera -
Foi tua companheira inseparável!
Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora, entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.
Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.
Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!”
Eu, por outro lado, sempre soube.
Dou-lhe a chance, portanto, de dizer adeus. Aproveite para se despedir daqueles que chama de amigo. Diga à tua mãe que tentou. Planeje sua ultima festa, beba seu ultimo copo, fume seu ultimo trago. Olhe outra vez a paisagem da janela, admire o barulho dos carros.
Sinta saudade das pessoas que perdeu, e mais ainda, daquelas que nunca teve. Pense nos lugares que não viu e de tudo aquilo que não conseguiu. Ande, dance sozinho no seu quarto e assista novamente aos filmes que te agradam.
Escute uma ultima vez a voz de quem ama, por que depois partiremos.
Aconselho, se quiser, que seja discreto. A única coisa que sempre tivemos em comum é o gosto pela discrição. Apesar de nascidos do mesmo pai e da mesma mãe, criados pelo mesmo mundo, recebidos pelos mesmos amigos, somos por demais diferentes, e não podemos mais viver de tal forma. Suas ânsias e desejos são grandes demais para o meu peito. Ele é pequeno, e está recheado pelas dores que colecionamos ao longo dos anos.
E mais ainda, as e-x-p-e-c-t-a-t-i-v-a-s. Nunca estaremos à altura das expectativas que criamos para nós dois, e muito menos das que criaram para você. Você sempre encorajou em todos as malditas expectativas, mesmo quando eu sabia que nunca poderíamos cumpri-las. Talvez seu papel fosse esse, fazer-me sofrer ainda mais.
Lembra quando éramos crianças? Você era engraçado, esperto e alegre. Você corria mais rápido que todos os nossos amigos, e era campeão de natação. Tinham certeza que seriamos um adulto feliz e realizado. Culpa sua.
Mas não mais. Estou cansado demais para carregar-nos nas costas. Você, ironicamente, não tem pernas. Estou cansado, sozinho e morrendo de medo. Não sou forte e corajoso como você e estou de saco cheio dessa sua vontade de parecer sempre invencível. Você é patético, e todos sabem disso. Você consumiu toda a força dos meus braços com suas inúteis tentativas de seguir vivendo. Você testou os limites da minha paciência com seus infinitos jogos de retórica. Você me escondeu, quando o que eu mais queria era que me vissem.
Então, leitor, diga adeus. Vou levá-lo comigo pela ultima vez, e dessa vez não vamos voltar.