quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

Arthur

Ou "O Eterno Eufemismo do Livre Sonhador".


Seu eu lírico tem nome? O meu tem, se chama Arthur. Arthur é uma mistura pretensiosa de um leitor de Schopenhauer com um personagem qualquer de um filme noir.

Provavelmente não trabalha. Passa a manhã inteira dormindo e almoça sozinho em um restaurante com pano de mesa xadrez. De tarde vai ao cinema assistir alguma coisa em preto e branco, depois vai para casa e fica lendo livros aleatoriamente selecionados até que fique tarde o bastante para andar pela rua sem ser incomodado pelo barulho dos carros e das pessoas que moram na cidade em que vive. As noites nessa cidade são sempre muito frias e um pouco molhadas, a iluminação também não é das melhores, apenas umas lâmpadas amarelas aqui e acolá. É claro que os muros das casas e dos prédios são um pouco descascados, deixando a mostra alguns tijolos. Existem alguns bares onde Arthur as vezes pára para beber. A cidade escura, fria e molhada se chama Ribeiro.

Ribeiro é a capital de algum grande estado, e possui alguns milhões de habitantes. Nenhum deles parece despertar qualquer tipo de interesse em Arthur, que fala muito pouco, mas fuma compulsivamente. Certa vez resolveu tomar nota de tudo que falasse ao longo de um dia comum, e não foi muito. “O de sempre, por favor”, “uma entrada para o filme das três”, “dois maços, por favor” e “mais uma dose” foram as únicas coisas que anotou em seu caderno. Pensou que se essas fossem as únicas coisas que soubesse dizer, sua vida não seria muito diferente, e chegou a acreditar que talvez fosse, de fato, tudo que soubesse falar.

As paredes do quarto de Arthur são brancas, e decoradas com estantes de livros. Uma mesa redonda, no centro da sala, guarda sempre os cigarros, as chaves, e os fósforos de Arthur. No chão, um tapete com desenhos sem sentido, e no canto um sofá de couro desbotado.

Arthur escreve poemas que não rimam e contos com personagens que suicidam no final.

Não teve infância, já nasceu com trinta e poucos anos, e desde então nunca fez aniversário. Continua com os mesmos trinta e poucos anos. Se formou, antes de nascer, em alguma universidade que não tem muito a ver com a vida que leva. Administração, ou algo do gênero. Ou talvez Farmácia. Arthur não se lembra exatamente se já teve alguém na sua vida. Mãe, pai, namorada, amigos, mas sabe que já perdeu algumas pessoas, e se lembra de não ter chorado em nenhum dos velórios. Sabe também que ninguém irá ao seu. Ele mesmo não iria se não fosse obviamente obrigado a tanto.

Oh, a liberdade. A insuportável liberdade de Arthur.

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2008

Esquizofrenia em quatro atos.

O autor não sabe por onde começar esse texto. Na verdade nunca sabe por onde começar coisa alguma, especialmente aquelas que falam sobre algo realmente importante, e não são simples exercícios literários sobre sentimentos que não sente e verdades em que não acredita.

Ao contrário do que dizem, o pior tipo de angústia não é aquela que chamamos de “existencial”, sem nenhum motivo aparente além da própria dor da existência. O pior tipo de angústia é aquela que vem de uma dúvida muito clara e real que, na maioria das vezes, é criada por acreditarmos em algo que sabemos não ser verdade, ou preferirmos crer que são verdades as mentiras que inventamos.

Nesse ponto qualquer eventual leitor já deve ter percebido que o autor de fato não sabia por onde começar esse texto, e talvez nunca mesmo devesse ter começado a escrevê-lo. Estejam advertidos, portanto, que ele ainda não sabe exatamente como começa-lo. Então sintam-se livres para pularem um ou dois parágrafos, e esperemos que no ponto em que retomarem o texto, caso decidam faze-lo, ele já tenha se decidido a cerca de como começa-lo, e tenha uma idéia mais precisa do que é a que ele se destina.

Aos leitores de mais afinco (ou ainda, mais tempo livre), decididos a continuar lendo na integra esse texto, o narrador promete ser o mais breve possível, apesar de que já agora devem considerá-lo um escritor muito prolixo. Além de muito pouco talentoso, vez que já em meados do quarto parágrafo o texto ainda nem mesmo começou. Mais uma falha óbvia que devemos apontar é a constante repetição – a palavra “texto”, por exemplo, já foi utilizada sete vezes até agora – mas é que nem sempre podem se encontrar sinônimos, e a repetição as vezes se faz necessária. Palavras, como pessoas, vez em quando são ímpares e não aceitam qualquer tipo de substituição. Devem ter percebido também, caso tenham prestado atenção ao primeiro e ao segundo parágrafo, que o texto é absolutamente pessoal, e provavelmente discorrerá sobre algum sentimento que o autor pretende sentir no momento.

Acredito ainda que o texto não proporcione prazer estético de nenhuma sorte ao mais exigente dos leitores. Ora, se nem mesmo quando se preocupa em escrever de maneira bonita e agradável, com tiradas sagazes e frases inteligentes, o autor consegue redigir algo decente, o que dirão desse texto que escreve simplesmente como desabafo, que nada mais pretende além de causar conforto em uma hora de muitos segredos angustiantes?

O pior tipo de angústia é não ser correspondido. Desculpem a mudança tão brusca, mas é que há dois parágrafos atrás foi prometido que agora já teria tido início o texto propriamente dito, portanto, deixemos de lado as elucubrações em que nos perdemos nos parágrafos anteriores, e vamos direto ao ponto em que precisamos chegar. Repito, então, o pior tipo de angústia é não ser correspondido. A vida se faz de projeções, de um eterno criar e atender expectativas. Quando as expectativas que criamos não são atendidas, corremos em inventar desculpas para amenizar nossa frustração, e é daí que nasce a maldita dúvida. Somos idiotas o bastante para querer acreditar nas mentiras que criamos, mas não o bastante para ignorar completamente a verdade.

O tipo de mentira mais comum nesses casos, ironicamente, é o que diz exatamente o contrário. Diz que somos paranóicos, e que as verdades que nos saltam aos olhos são frutos dessa imaginação distorcida que possuímos, enquanto na verdade sabemos que fruto da imaginação é a esperança que insistimos em manter viva a todo custo. Aí reside a fonte de todo o mal. Nesse ponto deixamos de saber exatamente se estamos inventando as verdades ou se elas sempre estiveram ali, mas as mentiras que criamos nos impediram de percebê-las.

Vocês, leitores, devem estar se perguntando por que diabos estão conseguindo entender esse texto. Ora, ele simplesmente não faz sentido algum, e ainda assim vocês o entendem. Ele não se explica, não tem começo, e ele nem mesmo sintetiza muito bem o seu próprio motivo. Mas a resposta para essa pergunta é muito simples: Não existem leitores. Existe apenas um leitor. Esse texto está sendo redigido para uma única pessoa, então talvez seja hora de começar a trata-lo por “você”, e deixar de lado a pretensa impessoalidade da palavra leitores. Você, leitor, é o tema desse texto.

É claro que você é suficientemente esperto para saber que escritores nem sempre dizem a verdade sobre aquilo que sentem, mas dessa vez você sabe que é diferente, que existe alguma verdade naquilo que lê. Vamos então abandonar outra terminologia impessoal: a partir de agora os termos “autor”, “escritor” e “narrador” serão substituídos pelo pronome “eu”, pronome esse que estará se referindo a mim mesmo, este que por hora toma vosso tempo. Assim sendo resolvemos, em parte, o problema da repetição, vez que os termos “autor’ e “leitor” também já foram exaustivamente utilizados.

Você e eu temos diferentes expectativas. Você quer demais, e eu tenho quase nada. Você é a parte do poema que olha para as estrelas enquanto eu sou a que se esfrega na lama. Aquela lama suja e molhada, que fica bem no fundo do poço. Você é alegre, forte e divertido, entende de música e fala de cinema, é cheio de amigos, tem um bom emprego, uma casa bonita, um carro e um cachorro. As pessoas gostam de você e algumas delas te admiram. Eu, por outro lado, sou o cara que fica sozinho de madrugada, que olha para o teto do quarto por horas, que vê o sol nascer na janela implorando para Deus fazê-lo dormir.

Você é insistente. Acha que o telefone não toca por que estão todos ocupados. Eu já desisti, sei que a verdade é muito mais dura que isso. O telefone não toca por que não querem falar comigo, e estou completamente sozinho.

O seu único problema sou eu. Você, infelizmente, não vive sem mim. Você nunca entendeu por que é que toda sua vida o único poema que conseguiu decorar foi

“Vês! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão - esta pantera -
Foi tua companheira inseparável!

Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora, entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.

Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.

Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!”

Eu, por outro lado, sempre soube.

Dou-lhe a chance, portanto, de dizer adeus. Aproveite para se despedir daqueles que chama de amigo. Diga à tua mãe que tentou. Planeje sua ultima festa, beba seu ultimo copo, fume seu ultimo trago. Olhe outra vez a paisagem da janela, admire o barulho dos carros.

Sinta saudade das pessoas que perdeu, e mais ainda, daquelas que nunca teve. Pense nos lugares que não viu e de tudo aquilo que não conseguiu. Ande, dance sozinho no seu quarto e assista novamente aos filmes que te agradam.

Escute uma ultima vez a voz de quem ama, por que depois partiremos.

Aconselho, se quiser, que seja discreto. A única coisa que sempre tivemos em comum é o gosto pela discrição. Apesar de nascidos do mesmo pai e da mesma mãe, criados pelo mesmo mundo, recebidos pelos mesmos amigos, somos por demais diferentes, e não podemos mais viver de tal forma. Suas ânsias e desejos são grandes demais para o meu peito. Ele é pequeno, e está recheado pelas dores que colecionamos ao longo dos anos.

E mais ainda, as e-x-p-e-c-t-a-t-i-v-a-s. Nunca estaremos à altura das expectativas que criamos para nós dois, e muito menos das que criaram para você. Você sempre encorajou em todos as malditas expectativas, mesmo quando eu sabia que nunca poderíamos cumpri-las. Talvez seu papel fosse esse, fazer-me sofrer ainda mais.

Lembra quando éramos crianças? Você era engraçado, esperto e alegre. Você corria mais rápido que todos os nossos amigos, e era campeão de natação. Tinham certeza que seriamos um adulto feliz e realizado. Culpa sua.

Mas não mais. Estou cansado demais para carregar-nos nas costas. Você, ironicamente, não tem pernas. Estou cansado, sozinho e morrendo de medo. Não sou forte e corajoso como você e estou de saco cheio dessa sua vontade de parecer sempre invencível. Você é patético, e todos sabem disso. Você consumiu toda a força dos meus braços com suas inúteis tentativas de seguir vivendo. Você testou os limites da minha paciência com seus infinitos jogos de retórica. Você me escondeu, quando o que eu mais queria era que me vissem.

Então, leitor, diga adeus. Vou levá-lo comigo pela ultima vez, e dessa vez não vamos voltar.

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2008

Recuse imitações